Adeus à Irlanda Gaélica

Existe uma realidade muito concreta e dolorosa para quem descende de refugiados oriundos da Irlanda Gaélica, a Éire Ghaelach. Eles vieram para o noroeste peninsular, sobretudo, na primeira década de 1600. Depois, ao longo da primeira metade do século XVII.

Nas últimas décadas, uma nova luz incidiu sobre a primeira grande vaga migratória irlandesa e um dos maiores fenómenos migratórios para a Península Ibérica. Isto aconteceu graças aos estudos de vários académicos, como Ciaran O’Scea, da University College of Dublin, e de vários outros, incluindo espanhóis, do Centre for Irish-Scottish and Comparative Studies (CISCS), da Trinity College Dublin. Este assunto era pouco conhecido, ao contrário dos fenómenos de assimilação, aculturação e expulsão de judeus e mouros; em Espanha chamados conversos e moriscos. As investigações incidiam quase sempre nos regimentos irlandeses, mas deixavam por alumiar a realidade da maioria dos migrantes, que seguiram os movimentos militares, em desespero de causa.

Irlandeses de todos os estratos da sociedade, sobretudo de Munster, an Mhumhain, a antiga província sudoeste da ilha, deixaram para sempre uma Irlanda gaélica agonizante e flagelada. Consequência da Guerra dos Nove Anos ou Rebelião de Tyrone, que opôs a aliança de clãs irlandeses, liderada por Hugh O’Neill de Tyrone e Hugh Roe O’Donnell de Tyrconnell, e as forças inglesas que se avolumaram, para subjugarem a ilha. Essa ambição existia desde as invasões anglo-normandas do século XII, as quais serviram os interesses dos ingleses e permitiram que as famílias nobres hiberno-inglesas, como os Butler, Fitzgerald, e Desmond, se estabelecessem na ilha. Estes formaram a nobreza rural, distinta da burguesia oligárquica inglesa urbana, do Pale, que dominava as cidades portuárias da severa costa leste.

O conflito culminou no desastroso Cerco de Kinsale, em 1601-02, a derradeira batalha perdida ao lado dos espanhóis, que assinalou a conquista inglesa da Éire e precedeu a colonização massiva. As baixas de guerra foram mais pesadas para os irlandeses, em número certamente superior a cem mil. A maioria destas mortes deveu-se à fome, que só no Ulster, entre 1602-03, terá matado sessenta mil pessoas. Infelizmente, também os ingleses contaram cerca de trinta mil mortos, sobretudo soldados que sucumbiram a ferimentos e doenças. Todos foram vítimas do imperialismo, que se iniciou, sem clemência, durante a dinastia Tudor.

A operação mais efectiva e simbólica da colonização ficou conhecida por Plantation of Ulster. Teve início depois da queda das Leis Brehon, o sistema jurídico civil irlandês, e do episódio conhecido por The Flight of the Earls, o exílio dos condes irlandeses e de noventa apoiantes, em Setembro de 1607. A Plantação durou de 1609 a 1690 e deu-se com a tomada de todas as terras dos O’Neil, dos O’Donnell, e dos clãs aliados. Seguiu-se a ocupação das mesmas, à semelhança do que acontecera no século XIII, na Escócia, onde foram atribuídas terras a famílias anglo-normandas e anglo-saxónicas, na sequência da conquista normanda do século XI, que teve lugar mais de cem anos antes do que em Gales e, por fim, na Irlanda.

No caso da Éire, a ocupação das terras dos clãs foi feita por senhorios ingleses e por camponeses presbiterianos, calvinistas, sobretudo ingleses do norte e escoceses do sul. Um acontecimento que transformou profundamente aquela província, até aí quase sem aglomerados urbanos. Descaracterizou o ensino oral, que antes era garantido por bardos, empregados pelos chefes gaélicos. Esse extermínio cultural resultou na decadência e depreciação do idioma gaélico e na afirmação do inglês, como linguagem superior, que era ensinada nas poucas hedge schools privadas, fundadas pelos colonizadores. De resto, havia muito que a língua céltica deixara de ter carácter de língua sagrada, em benefício do latim, o qual estava, no entanto, repleto de goidelismos, formas metafóricas e incomuns, sendo falado apenas pelo clero.

Herbert Thomas Dicksee RE (1862-1942) The Lone Wolf gravura, prova assinada, um de 100, publicada por Frost & Reed, 1916.

Aquando da Guerra Civil Inglesa e da chegada dos terrores infligidos por Cromwell a uma Irlanda completamente dilacerada, a Ilha Sagrada sangrou e ardeu. Wolf-land passou a ser o nome alternativo para a selvagem Éire, com a sua Linguagem Gaélica, que continuou a ser a mais falada, mas a menos usada para tudo o resto. O território até então indómito foi alvo de desflorestação massiva, para tirarem proveito da maior área possível, acabarem com os prejuízos resultantes dos ataques de lobos ao gado, e para desalojarem todos os “woodkernes”. Estes eram os rebeldes que nos bosques residiam e resistiam. Foram descritos em 1610 como “human wolves”, por Lord Blennerhasset, Chefe Barão do Tesouro Irlandês, que recomendou que eles fossem «track[ed] down […] to their lairs». Em apenas duzentos anos, a mancha arbórea foi reduzida de um oitavo do país para um quinto.

Ao mesmo tempo que os irlandeses eram massacrados, deslocados, concentrados, e deixados à fome, no reinado de James I, foram contratados caçadores e teve início uma campanha de extermínio massivo dos lobos, que apesar disso sobreviveram ali mais três séculos do que em toda a Grã-Bretanha. Antes da conquista inglesa, a caça ao lobo existiu a título recreativo, mas esta operação não teve precedentes.

Eles foram sacrificados pelo seu simbolismo, que foi eternizado por William Shakespeare na frase, «like the howling of Irish wolves against the moon». Estavam conotados com a suposta bestialidade dos súbditos irlandeses, que justificava o tratamento que lhes era dado pelo Estado Inglês. No livro de Keith Thomas, Man and the Natural World, de 1983, o autor mencionou um testemunho dado por um capitão militar e pelas suas tropas, descrevendo os corpos de uma guarnição irlandesa, chacinada em 1647, e asseverando que muitos daqueles encontrados mortos «had tails near a quarter of a yard long». Quer o massacre dos lobos, quer o dos rebeldes, foi incentivado e recompensado financeiramente.

Entretanto, os soldados irlandeses tinham ganho reputação fora da Irlanda. No início do século XVI, a Espanha e a França começaram a competir pela presença deles nos seus exércitos e a República de Veneza salientava as suas qualidades. Eram os filhos resilientes de uma terra agreste. Em 1598, Diego Brochero de Anaya escreveu ao rei de Espanha, acerca da falta de marinheiros na Armada. Sem hesitar, afirmou que a solução seria o recrutamento, ordenado pelo rei, de soldados irlandeses, uma vez que eles eram homens resistentes e fortes, que nem o clima adverso nem a falta de comida e as doenças matavam facilmente, ao contrário do que acontecia com os marinheiros espanhóis. O conselheiro referiu que isso se devia ao facto de a ilha deles ser muito mais fria do que esta terra, de eles andarem quase nus, dormirem no chão e comerem papas de aveia, carne e água.

A estima pelos irlandeses tornava fácil a interação com os soldados espanhóis, que eram considerados os mais exclusivos do Exército dos Habsburgo. Apesar disso, outros conselheiros militares espanhóis alertaram para a falta de treino dos irlandeses, que atacavam em guerrilha. Esta técnica era desaprovada pelos militares espanhóis e o fiasco em Kinsale comprovou que havia razões para isso. Inegável era que, uma vez integrados no Exército da Flandres e depois de treinados, os irlandeses se tornavam excelentes soldados e fiáveis, ao contrário dos mercenários oriundos da ilha.

Entre 1602 e 1608, e depois, em meados do século XVII, as costas da Corunha foram porto seguro para um tremendo influxo de regimentos irlandeses, que incluíram soldados gaélicos escoceses. Para migrantes refugiados da perseguição religiosa e do genocídio pela fome, para alguns membros de clãs gaélicos de Ulster, e até para algumas famílias Old English do Pale, católicas e com afinidades inconvenientes, a quem também foram confiscados os terrenos, as casas e outros bens.

Com os militares, vieram as famílias e outros civis, como pajens e criados. A presença deles na Galiza encorajou centenas de irlandeses pobres e desapossados – sobretudo, idosos, mulheres e crianças – a embarcarem como podiam. Num ápice, gerou-se uma crise migratória. Em poucos anos, terão passado pelo noroeste peninsular cerca de dez mil gaélicos, que correspondiam a uma secção transversal da sociedade irlandesa. Esta era de organização agnática e culturalmente muito diferente dos galegos e espanhóis, a começar pela tradicional oralidade. Aqueles que não eram militares e que não foram para a Flandres espanhola, mas que também não quiseram aceitar cinquenta reales para voltarem para a Irlanda, onde a morte seria certa, tiveram diversos destinos, na Galiza e no território do noroeste peninsular. Entre eles, estavam os meus antepassados.

Entretanto, é importante que não fique no ar a noção de que todas as portas se abriram aos irlandeses mais letrados, aos padres, frades e bardos gaélicos, e aos filhos dos clãs perseguidos, que formaram as comunidades irlandesas da Corunha e de Santiago de Compostela. A chegada à Galiza e a permanência dos irlandeses não significou que eles puderam simplesmente transferir o seu modo de vida, o seu culto católico gaélico, o seu idioma e os seus métodos académicos para esse território. Logo à partida, porque existia um cargo de assuntos estrangeiros, que assegurava a vistoria de todas as embarcações, em busca de livros proibidos. Para além disso, havia discriminação e um ambiente de permanente suspeição no âmbito universitário.

O exercício pastoral, bem como de docência, exigia uma formação prévia em latinidade, cursando Artes ou Filosofia numa universidade, como a de Santiago. A propaganda milesiana e as afinidades com os dominicanos foram essenciais para a prossecução dos intentos políticos dos exilados mais proeminentes. Apesar de poderem contar com uma importante protecção institucional e governativa, e de beneficiarem de ajuda financeira, nem todos foram imunes a acções persecutórias. Pelo menos, dois nomes estão associados a processos inquisitoriais, sendo o de Patrick Synot aquele que mais impressiona.

Este gramático irlandês, nascido em Westford, chegou à Galiza nos anos oitenta do século XVI, «com sus padres, caballeros irlandeses que habían sido perseguidos por su fé». Em 1595 tenta obter sem sucesso uma cadeira em Santiago e em 1602 surge como conselheiro em assuntos irlandeses, junto do governador da Galiza, o conde de Caracena. Também como informador dos irlandeses no reino e como preceptor responsável pelo ensino dos filhos de clãs, como os O’Sullivan Beare. Enquanto exercia essa mesma função na vila de Noia, tenta de novo uma cadeira universitária, que só obteve em 1611, depois de muitos incidentes e oposição. A sua posição como professor foi muito controversa, devido à sua ruptura com os métodos tradicionais, aos quais foi forçado a ajustar-se, mas também pelas suas reivindicações por melhor remuneração e por cadeiras de maior prestígio, pelo absentismo laboral e pelas suas atividades extra-escolares.

O final da atividade académica de Patrick Synot deveu-se ao encontro com a Inquisição, depois de ser acusado de necromancia. A consequência imediata foi a sua prisão, seguida da sua confissão, da sua abjuração, de uma repreensão verbal e do desterro por dois anos. Seguiu-se a acusação de «astrólogo judiciario», devido às suas práticas divinatórias, através da observação dos planetas e porque «dejaba la escudilla e la vela de cera bendita hilada por três Marías Vírgines y estudiaba en los libros de los grandes nigromantes, hacía rayas e círculos, números e caracteres en lugar de cruces de ramas de oliva.» Os seus clientes seriam poucos e só houve duas testemunhas. Synot reconheceu todas as acusações, pelo que «no se lo dio pena mayor por ser de la calidad que es e muy pobre». Foi excluído do auto-de-fé de 24 de Maio de 1622, por deferência da Inquisição para com a Universidade e para que o escândalo fosse abafado.

Imagem de destaque:

Herbert Thomas Dicksee RE (1862-1942); ‘Baffled’, gravura, prova para impressão representando uma alcateia no topo de um rochedo, Grã-Bretanha, 1908, no Victoria & Albert Museum (não exposto).

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