A Tradição Céltica é indómita.
Reclamar ancestralidades não deve servir para dilapidar heranças. A intelectualidade, a sensibilidade, e a espiritualidade verdadeiramente livres não usurpam nem se apropriam de nada. Ninguém tem legitimidade para deturpar, manipular, ou erodir uma herança espiritual e étnica, de acordo com as suas agendas, ainda que dela descenda. Afinal, as formas mais insidiosas de apropriação cultural e espiritual vêm de dentro da própria etnicidade.
A Arte é um recurso vibrante de conexão ancestral, através da dimensão espaçotemporal. Deve ser reverenciada e referenciada, sem ser colocada fora de contexto. Nem mesmo os irlandeses devem usar os seus símbolos ancestrais sem lhes renderem a devida homenagem. É através de artefactos mitológicos que tomamos conhecimento dos símbolos que estão na essência dos Mistérios.

Os Celtas da Éire legaram-nos um dos mais refinados e tardios exemplos da presença e evolução do estilo artístico La Tène Insular. Trata-se de um pequeno disco de metal, com aves estilizadas em triskle ou tríscele céltico, da era pré-cristã, da Idade do Ferro, que foi encontrado em Loughan Island, Co. Derry. Está patente no Ulster Museum, em Belfast. A mais conhecida adaptação deste artefacto talvez seja a reprodução linear da Coleraine Historical Society, que adequadamente deu o nome The Bann Disc à sua célebre revista, acerca da herança local.
O rio Bann, na margem leste do qual foi encontrado o pequeno disco, logo acima do Loughan Graveyard, deve o seu nome a An Banna, que é outra deusa da Tuatha Dé Danann. Em gaélico, ban e bean querem dizer mulher, como em banfháidh ou bean feasa e banshee ou bean nighe.
O resgate das heranças ancestrais deve ser fundado em temperança e na escuta de genuínas transmissões da memória ancestral, mas também é preciso ter a humildade e a delicadeza de estudar, com critério e objetividade. Devemos aceitar os nossos ancestrais por tudo aquilo que eles foram e não os idealizarmos. Negar qualquer um dos seus feitos, ações ou traços de caráter, quer os consideremos benéficos ou perniciosos, seria uma ofensa imperdoável e uma injustiça.
Os pontos-de-vista e as crenças pessoais não devem ser difundidos como, passo o pleonasmo, a verdadeira verdade. Devem ser evitadas as extrapolações e inferências. Serem simplistas acerca de assuntos complexos, como se falassem de certezas, em vez de hipóteses ou de completas incógnitas, denota incompreensão e desleixo. Sobretudo, no que concerne à Ancestralidade, aos druidas e aos Celtas, em geral. Revela lacunas no entendimento de premissas e conjunturas fundamentais, que devem ser contempladas. O desconhecimento das nossas heranças celtas e arcaicas propicia a substituição cultural, a agregação ideológica, e a asseptização de povos, como os Celtas.

A expressão Cardiac Celt, foi introduzida nos discursos atuais por Marion Bowman, pesquisadora da New Age, dos Novos Movimentos Religiosos e espiritualidades alternativas, que é Professora Sénior da Open University e aborda a interdisciplinaridade dos Estudos Religiosos, Folclore e Etnologia. Segundo ela, Cardiac Celt é relativo a pessoas que, simplesmente, sentem nos seus corações que são celtas e que têm essa filiação espiritual. Esse sentimento pode gerar grande necessidade de afirmação pública, de acordo com aquilo em que acreditam. Isso pode ser inebriante e até tóxico, levando à total rejeição de factos.
Acredito que o multivocalismo e as diversas visões podem gerar discursos válidos, acerca da relevância das heranças ancestrais para as espiritualidades atuais. Em particular, no vasto espectro do Paganismo. Para isso, é essencial que estejam ancorados no respeito pelas fontes disponíveis. Sem elas, ficaremos mais vulneráveis aos logros, às teorias da conspiração, ao sensacionalismo, ao sentimentalismo cego, ao invencionismo desenfreado, ao negacionismo, ao furor ideológico, à idealização arrebatada, a vários fanatismos, e ao racialismo.
Legenda:
Citânia de Sanfins, Paços de Ferreira, 2001, por Andreia de Morais © All Rights Reserved.
Imagem de destaque:
Conjunto de três torques em ouro, de cronologia pré-romana, encontrados entre Paradela do Rio e Outeiro, Montalegre. Em exposição no Ecomuseu do Barroso.

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Imagem de destaque:
Andreia Silva de Morais.
