Descobrindo a Ancestralidade Irlandesa na Galiza

Eu não sabia que viria a ser possível identificar com relativa precisão a minha ascendência irlandesa gaélica.

Apesar de ter consciência das migrações irlandesas para a Galiza, eu associava-as aos militares, aos eclesiásticos, aos lordes e clãs dominantes. Não via qual poderia ser a relação deles com os meus antepassados conhecidos, apesar de eu ter uma ascendência galega muito pronunciada, com origem predominante em uniões luso-galegas de Vilarelho da Raia, que estão muito bem documentadas, entre outras.

Parecia-me que tudo teria sido bastante aleatório e não mais do que uma casualidade ou episódios isolados. Que talvez um soldado ou marinheiro irlandês se tivesse cruzado com uma galega. Sabia que o mais provável seria nunca vir a conhecer as circunstâncias que me permitiriam identificar os momentos e locais em que os irlandeses se uniram com e vários ramos da minha genealogia peninsular.

Detalhe – Mapa do Reino de Galicia, por Fernando Ojea (1603); Vilar de Perdizes, na raia, está claramente assinalada, confinando com as terras do estado do conde de Monte Rey Monterrei. À data de execução, o Reino de Portugal era parte de Espanha e as fronteiras não tinham efeito, conforme está indicado neste mapa, pelo pontilhado que divide os dois países, em vez da habitual linha contínua. ©Ø

A chegada dos irlandeses ao estado do conde de Monterrei é o momento histórico em que a diáspora irlandesa na Galiza toma uma dimensão verdadeiramente pessoal. As circunstâncias territoriais, numa época em que fronteiras de séculos caíram por terra, durante várias décadas, deram lugar à escassez de registos sacramentais, que é sintomática.

Afinal, de acordo com o exemplo da Corunha, é sabido que os irlandeses se fecharam, durante pelo menos uma década. Até 1630, os expatriados preferiam que não houvesse lugar a registo paroquial, ainda que recebessem o batismo, sobretudo de frades e padres irlandeses, antes das proibições que recaíram sobre eles, relativamente à atribuição de capelas e ao exercício de qualquer atividade pastoral na Galiza. Por isso, os números oficiais a que temos acesso são muito inferiores ao total de nascimentos.

Entre os membros da nobreza gaélica e Old English, apenas cinquenta porcento registava os seus descendentes nascidos na Galiza. De acordo com esses registos, a população irlandesa na Corunha corresponderia apenas a um porcento da população, o que é um perfeito engano. Eu sinto que talvez eles alimentassem a esperança insana de voltarem à Irlanda e de recuperarem a sua Érie Ghaelach. Suspeito que terá sido por isso que resistiram à assimilação e à aculturação, preferindo a endogamia, com raras exceções na década de 1610.

Até aos meados do século, os casamentos entre irlandeses continuaram a ser a maioria. Quarenta e nove em sessenta e três nascimentos registados, de 1603 até 1642, eram fruto da endogamia gaélica. Os matrimónios entre irlandeses e galegos, que começaram sobretudo entre os estratos mais elevados da sociedade irlandesa da Corunha e os poderes locais, só se tornaram mais frequentes depois da segunda década do século. Para a arraia-miúda terá sido diferente, apesar da persistência da endogamia, tanto quanto possível, dada a maioria feminina.

Imagino que, entre o desespero e a fome, as mulheres e as crianças tenham estado vulneráveis a circunstâncias indesejáveis, à partida, advindas dos próprios irlandeses. Por exemplo, havia relatos acerca de indivíduos diletantes que rondavam os núcleos urbanos, como os de Santiago de Compostela, e que não eram bem-vistos pelas comunidades galegas. Esse panorama de precaridade só se terá alterado depois da implementação das medidas ordenadas pelo rei Filipe III e da chegada da chamada gente inútil às terras que lhes foram cedidas, para trabalharem e se sustentarem.

As uniões legítimas e naturais, sobretudo entre mulheres irlandesas e homens locais, tanto galegos como portugueses, raianos, terão sido frequentes, logo que as novas gerações conseguiram comunicar e se aculturaram. A necessidade dos irlandeses se mesclarem com o contexto que encontraram terá sido premente e levado rapidamente ao apagamento da identidade gaélica, a começar pelo desaparecimento dos apelidos irlandeses.

À dita gente inútil foram dadas terras onde podiam trabalhar. Conforme ordem real, os baldios do Reino da Galiza, particularmente no estado do conde de Monterrei. A decisão de Filipe III foi generosa, mas bem calculada, para servir os interesses de Espanha, num território instável e potencialmente problemático, como fora durante séculos. Os domínios do conde de Monterrei concentravam-se, sobretudo, no sul da atual província de Ourense, junto à fronteira com Portugal. Essa linha divisória esbatera-se vinte e seis anos antes e continuaria sem efeito durante os trinta e quatro anos seguintes, até ao avanço das tropas portuguesas para as fronteiras, durante a primeira fase da Guerra da Restauração de Portugal.

O estado de Monterrei situava-se, mais ou menos, entre as longitudes imediatamente a oeste de Baltar e a leste de A Gudiña. Compreendia parte de Ervededo, uma vasta área integrada no território de Baronceli, que era anterior à formação de Portugal. No século XI, Ervededo pertencia ao conde Limiano, que possuía também Rabal, Tamaguelos, Mourazos e Vilarelho da Raia. Esta passaria a ser freguesia portuguesa e raiana, à semelhança da parte galega de Vilar de Perdizes, o que aconteceu quando Ervededo foi doado pela diocese de Ourense à diocese de Braga, sob a forma de couto. Os conflitos entre as gentes do couto de Ervededo e as gentes de Monterrei foram muitos e o castelo de Monterrei chegou a ser tomado pelos portugueses, no século XIV.

Mapa da raia, onde confinavam as terras do Barroso e Ervededo, em Portugal, e as do estado do conde de Monterrei. Está assinalada a passagem da Ribeira do Inferno, que unia a estrada da Xironda, e a estrada que vinha de Verin e do Castelo de Monterrei, à aldeia de Santo André (de Vilar de Perdizes). De Santo André a Monterrei são 20 km. Também assinaladas estão a aldeia de São Miguel de Vilar de Perdizes e de Vilarelho da Raia, assim como o Castelo de Monterrei, a 11 km. O rio Tâmega segue daí para sul, em direcção a Chaves. [Imagem Google Maps]

Os irlandeses nada sabiam acerca do carácter volátil da região e duas gerações tiveram a oportunidade de viver sem grandes constrangimentos fronteiriços. Foram habitar uma área preterida por muitos galegos e que só deixou de ser a solução para o problema dos migrantes quando as tropas dos dois países se concentraram perto das raias, na década de 1640. Foi terra fértil e com algumas alturas, aquela que encontraram no vale de Monterrei, que é formado pelo rio Tâmega. A travessia entre os territórios de Monterrei e Ervededo era muito convidativa, porque o vale era a única passagem natural para a Raia Seca. Aí começa Portugal, a meros vinte e cinco quilómetros do castelo de Monterrei, que foi edificado por D. Afonso Henriques, numa pequena montanha com 521 metros.

Os descendentes galegos dos irlandeses procuram novas possibilidades, fora da Galiza, em comunidades de fronteira, acostumadas a não discriminar entre galegos e portugueses. A História não revela as estórias contadas entre as mulheres que se reuniam no forno do povo e em redor dos tanques das lavadeiras, nem entre os homens que saíam para a caça e para fazerem carvão vegetal. Parece-me possível, se não mesmo evidente, que algum do imaginário gaélico tenha perdurado e sido infundido no riquíssimo folclore local. Nunca tinha imaginado a existência e a movimentação de uma vaga migratória tão expressiva, numa região muito bem demarcada.

Onde antes existia uma grande incógnita, agora há elucidação. Só foi possível chegar a este ponto porque mantive o espirito recetivo e a mente curiosa. Não fiquei a vaguear nas brumas das lendas milesianas, nem limitada por noções falaciosas acerca das migrações celtas. Tenho a certeza de que a minha dedicação ao estudo histórico da diáspora gaélica, as minhas pesquisas relativas ao trabalho desenvolvido por académicos devotados a este assunto, a quem sou muito grata, assim como as minhas perceções, poderão alumiar o caminho de outros descendentes de irlandeses gaélicos. Se pudesse estar diante dos meus antepassados insulares, dir-lhes-ia o mesmo que lhes digo com a voz da alma.

Ní raibh do fhulaingt i vain. Tá tú i do chónaí ionamsa agus ionainn.

O vosso sofrimento não foi em vão. Vocês vivem em mim e em nós.

Imagem de destaque:

Mapa do Reino de Galicia, por Fernando Ojea (1603).©Ø.

Para ler mais…

search previous next tag category expand menu location phone mail time cart zoom edit close