Druidas, os Guardiães

Druides é a forma conhecida mais antiga e autêntica da palavra que descreve a classe sacerdotal. É uma palavra celta, que Júlio César empregou, excecionalmente, a par da designação sacerdotes, para descrever aqueles que admirou pela sua extraordinária originalidade.

Temos a imensa sorte de saber qual era o termo que os sacerdotes celtas usavam para se designarem, individualmente e enquanto classe. Não há razão para termos a imodéstia de achar que encontrámos uma designação melhor ou que não importa como lhes chamamos.

Os druidas da Éire uniram as refinadas aptidões artísticas e a Alta Imaginação ao legado mitomágico atlântico, remanescente na ilha e perpetuado pelos povos agrários continentais. Esses criadores de gado chegaram a Sligo, a partir da Bretanha are mori, que em gaulês significa à beira-mar. Foram adoradores da Mãe Terra, que viria a ser honrada como a diosa Cailleach. Construtores de túmulos e gravadores de petróglifos, eles abateram muitas das florestas que antes cobriam grande parte do território da ilha. No final da Idade do Bronze, elas passaram a ser escassas, à exceção de bosques que, apesar de tudo o que se seguiu, ainda pontuam a paisagem.

Aquelas circunstâncias territoriais originaram druidas distintos dos seus homólogos do continente e da Grã-Bretanha. Foram esses druidas que se estabeleceram também em Ynys Môn, no oeste de Gales. Os druidas da Éire eram excelsos sacerdotes com competências metafísicas, transversais à sociedade celta, tripartida e trifuncional – sacerdotal, guerreira, e produtora –, a qual eles teceram, através de mitologias primorosas, à imagem da sociedade divina, celestial, da qual eram representantes terrenos. Sem o desmérito que muitos lhes atribuíram, por terem sido sumptuosamente recompensados, na paz e na guerra.

Acima de tudo, a soberania deveria ser assegurada pela colaboração entre a figura real e a figura sacerdotal, sendo que o rei recebia e exercia o conselho do druida. Um sem o outro não teria razão de existir, porque a realeza era o campo de actuação do druida e sem ele qualquer corte ficaria desequilibrada e tornar-se-ia decadente.

No entanto, o druida não estava limitado por nenhum contrato. Podia escolher a que rei servir e era livre de aconselhar aquele que melhor o recompensasse e mais reconhecimento lhe prestasse. Os sacerdotes eram livres de circular sem constrangimentos territoriais. Ao contrário, o rei estava muito limitado nos seus movimentos e não podia abandonar o seu reino. O druida era um “ministro” que ele podia solicitar, mas não dispensar quando quisesse, uma vez que o poder espiritual daquele estava acima do seu próprio poder temporal.

Uma palavra mais adequada do que hierarquia e subordinação é gradação. Outra palavra é precedência, que os elementos sacerdotais tinham, em relação a todos os outros, por lhes inspirarem reverência ou temor, e não por simples imposição hierárquica. Se não houvesse nenhuma gradação, dentro e fora do círculo sacerdotal, que era o único transversal à tripartidação e à trifuncionalidade, não teria existido a sociedade celta que está plasmada na Mitologia Irlandesa.

Os druidas eram administradores das três medicinas; a encantatória, a título exclusivo; a do sangue, com os membros da classe guerreira; e a vegetal, praticada pela classe dos produtores e artesãos. Da medicina encantatória fazia parte uma forma arcaica de escrita, como ferramenta mágica reservada aos sacerdotes mais experientes. Como no caso dos brâmanes, o sacerdócio celta não estava ao alcance de todos, sendo sobretudo hereditário.

É equívoco e tendencioso fazer a conflação da figura do sacerdote celta, o druida, com as figuras de curandeiras e curandeiros, que existiram e perduraram, em áreas de diversas influências étnicas. Essa era uma competência que qualquer pessoa podia aprender e praticar, mas que também era essencialmente passada, de geração em geração, entre pessoas da mesma família; não necessariamente apenas mulheres. Como acontecia com todas as especialidades técnicas e bélicas.

Na sociedade celta da Éire, o branco – mais ou menos cru, literal ou simbólico – era a cor sacerdotal, tal como notaram Le Roux e Guyonvarc’h, em várias das suas obras. Não quer, de todo, dizer que os druidas vestiam sempre de branco, mas como outras associações celestiais, com importante caráter simbólico para os Celtas, de acordo com a Mitologia Irlandesa, essa também não pode ser atribuída à cristianização.

Quanto a distinções, em irlandês arcaico existia a palavra ollam ou ollamh, entretanto anglicizada para ollave e ollav, que era usada para distinguir os mais insignes filí. Esta palavra definia os druidas que exerciam a inspiração poética e que continuou a ser usada até à Renascença. Eram reconhecidos dons de clarividência poética a esses distintos filí e eles praticavam um ritual que lhes permitia exercitar o que em irlandês arcaico se chamou imbas forosnai, a inspiração clarividente, uma vez que imbas está para grande conhecimento e talento poético, enquanto forosnai indica a qualidade de iluminar. Seria aquilo que, posteriormente, em galês se designou awenyddion.

O ritual foi descrito no Sanas Cormaic, do século décimo da presente era. Segundo essa referência, o poeta mastigava um pedaço de carne vermelha de porco, cão ou gato, e depois colocava-o numa lage de pedra perto da porta e entoava sobre ela uma invocação aos deuses. Entoando um cântico sobre as suas duas palmas, pedia para que o seu sono não fosse perturbado e depois colocava as duas palmas sobre a face e adormecia. Era guardado por homens, para não ser incomodado nem voltado ao contrário. Ao fim de três dias e noites, o poeta diria se o imbas forosnai surgira ou chegara até ele.

No Táin Bó Cúailnge, Medb pergunta a Fedelm se ela alcançou imbas. De todas as figuras mitológicas irlandesas, Fionn mac Cumhaill, ou seja Finn McCool, é quem demonstra imbas forosnai de forma mais consistente. A palavra ollam era usada para distinguir o estatuto mais elevado, fosse em relação aos filí, aos druidas mais sapientes, aos juízes, e aos reis. Portanto, os druidas, na sua vasta diversidade, não eram todos encarados da mesma forma, nem entre si nem perante a sociedade celta da Éire.

Os druidas seriam bem distintos dos modelos de virtude pacifista e sensibilidade ambientalista, que povoam as mentes de muitas pessoas. Quanto à sua caracterização física e moral, não devemos ser afoitos. Certo é que a Mitologia Irlandesa nos permite saber quais eram as três falhas fatais dos druidas e que não estariam todos imbuídos de um impecável senso de retidão moral, sensibilidade e sabedoria.

Guardiães da Tradição Celta, os druidas faziam uso do alfabeto grego, em assuntos públicos e privados, mas exercitavam a oralidade e a memória para preservarem a doutrina tradicional, que era transmitida com fidelidade aos versos antigos. A classe era rigorosa, cultivava a retidão moral e não perdoava nenhuma das falhas a que o seus membros estavam sujeitos.

Os druidas podiam ser temíveis e tinham funções da maior relevância no cerne da sociedade celta organizada. Foram juízes, legisladores, conselheiros. Eram sacrificadores, vaticinadores, professores, escanções, sátiros, harpistas, e poetas. Estavam isentos de impostos e dispensados de sevir na guerra. A principal função druídica era administrar a Lei, servindo a Justiça.

As especializações druídicas, conforme mencionadas na Mitologia Irlandesa, podiam conjugar-se num sacerdote e devem ser entendidas tendo em mente a noção de gradação, mas sem interpretação hierárquica, no sentido da subordinação. A lista seguinte, que nos informa em detalhe acerca dessas especializações druídicas, é uma citação traduzida de Les Druides [op. cit., ed. 1986, p. 44.], tal como consta de A Sociedade Celta [op.cit., ed. 1991, p. 152.]:

«– sencha     historiador, antiquário, genealogista, panegirista, professor;

– brithem     juiz, jurista, legislador, árbitro;

– scelaige     narrador;

– cainte sátiro;

– liaig          médico, cirurgião (fazendo uso das três medicinas: mágica, do sangue e vegetal);

– cruitire     harpista;

– deogbaire   escanção;

– dorsaide    porteiro;

– file      poeta (em geral);

– fáithe        adivinho, vate (técnico de predição e da profecia, única função sacerdotal acessível às mulheres).»

Na Irlanda e na Gália, por princípio, à banfháidh e à druiada estava destinado o exercício dos dons de profecia, mas a mitologia irlandesa refere várias bandruí com outras funções. Existiram comunidades druídicas de homens e mulheres, que funcionavam como clãs, das quais as cidades monásticas cristãs célticas herdaram o cariz intelectual. Criaram uma colónia em Ynys Môn, a Ilha de Mona, atual Angelesy, no País de Gales.

Houve intercâmbio entre a Irlanda e a Grã-Bretanha, onde existiu um centro da sabedoria druídica, ao qual afluiam neófitos britónicos, gaélicos, e bretões continentais. Corresponderia ao entorno de Ynys-wydryn, do galês para Ilha de Vidro, atual Glastonbury, onde o Tor era interdito. Evidências recentes reforçam a noção puramente intelectual de que pode ter havido breve contacto entre druidas e cristãos em Ynis Witrin.

Assim terá acontecido na Irlanda, onde a transição para a Fé cristã não foi imposta por Roma. Os mosteiros não estavam dependentes de bispados nem do Papa. A cultura bárdica perdurou. A mitologia e um resquício de genuína teologia druídica, que não foi malogrado pela censura cristã, foram preservados nos manuscritos, em irlandês arcaico.

O resquício que mencionei, um verdadeiro tesouro espiritual e material, é o último fragmento de reflexão druídica acerca do homem em relação às funções divinas e das relações das funções divinas umas com as outras. Portanto, muito mais do que uma reflexão acerca das funções sociais ou de um caminho fácil para comparações de deuses com as três classes da sociedade celta.

Trata-se de um trecho contido nas chamadas fades Stroh, a “palha insípida”, que é um vestígio do passado longínquo e que aparece no parágrafo 220 do Cóir Anmann, que significa “Elucidação dos Nomes”. É um documento em irlandês médio, que fornece elucidações acerca do significado e associações de muitos nomes pessoais da Irlanda antiga, tal como o Dindshenchas faz em relação aos nomes de lugares, e cujo título é também um epíteto de Ana.

A referência bibliográfica mais usual é a obra Irische Texte mit Übersetzungen und Wörterbuch, herausgegeben von Wh. Stokes und E. Windisch, dritte Serie, 2 Heft (Leipzig, 1897). Eu li acerca desta reflexão em A Sociedade Celta, Capítulo II – Classes e Funções, 7. A lição de teologia irlandesa: a armadilha da aparência, de Françoise Le Roux e Christian-J. Guyonvarc’h.

É acerca do nascimento dos três Fothad, ou seja os três fundamentos, que eram três gémeos com nomes terminados em –dia, ou seja, “deus”, os quais são teónimos relativos aos segredos mitológicos da Irlanda; Aendia, Trendia, e Caendia, ou seja, “deus único”, “deus forte”, e “deus belo”. Os três deuses fundamentais, que nasceram, respetivamente, à chegada da noite, à meia-noite, e ao raiar do dia, refletindo os momentos do tempo e as qualidades de luminosidade.

São relativos a Dagda, ao seu irmão Ogme e a Lugh, por ordem inversa; Caendia, o belo deus-druida e deus dos deuses; Trendia, o forte que é o campeão, com o seu bracelete, dois aneis e colar de ouro, o seus carro, o seu cavalo e o seu cão; e Aendia, o único, que é o deus supremo que transcende todos os outros deuses e todas as suas funções.

Imagem de destaque:

Two Druids walking in the English countryside, gravura do século XVIII.

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