Desde a intervenção militar falhada na Irlanda, vários reis espanhóis sentiram-se comprometidos a amparar os irlandeses, que desde 1570 fizeram várias tentativas de revolta.
A união das coroas de Portugal e Castela, em 1580, tornou a Espanha numa potência atlântica, ao mesmo tempo vulnerável a ataques dos outros poderes atlânticos. Filipe II, com as suas motivações militares e religiosas, tornou-se o principal opositor de Inglaterra e apoiante dos irlandeses. Um dos primeiros sinais dos laços entre a Irlanda e a Galiza, foi a crescente concentração de eclesiásticos irlandeses neste território.
Por outro lado, os governantes da Galiza tiveram um papel importante na receção e apoio aos irlandeses, de 1587 a 1606. Em particular, o conde de Caracena, que se correspondeu com Hugh O’Neil, durante a Guerra dos Nove Anos. Ele recomendou o apoio aos irlandeses, na Irlanda, como imperativo moral e prevenção de ataques ingleses à costa galega, como aconteceu na Corunha, sob o comando de Drake, em 1589. A intenção deste era eliminar a população irlandesa que começara a existir na cidade. Anteriormente, ocorrera uma tentativa de assassinato de um bispo irlandês, em Ferrol.
Outro motivo do desagrado inglês foi a rota comercial que surgiu, ou refloresceu de tempos ancestrais, entre a Corunha e a Irlanda. Isto estava relacionado com a afluência dos navios militares e com a perda do controle inglês da rota entre a Andaluzia e o norte da Europa, devido ao conflito anglo-espanhol. Se naquela fase inicial, a presença irlandesa na Corunha foi lenta, mas gradual, aconteceu o contrário entre 1601 e 1606. A causa principal foi o falhanço dos intentos de Hugh Roe O’Donnell, junto da coroa espanhola, e a subsequente degeneração da situação militar no oeste de Munster, na primeira metade de 1602, logo após a retirada espanhola. Assim como a intensificação da presença inglesa, de 1604 a 1607.
Isto resultou numa explosão migratória, que causou severos problemas financeiros ao governador da Galiza. O irlandeses que chegaram a Valladolid através da Galiza, da Cantábria, do País Basco e de Portugal, foram redirecionados para a Corunha, para não criarem constrangimentos na corte real, onde não havia capacidade para lidar com esse influxo. A vasta correspondência entre o conde de Caracena e os conselhos reais atesta que a questão migratória irlandesa passou a ser a preocupação principal do governador, entre 1601 e 1606.
Até ao Verão de 1603, a imigração irlandesa estava eficazmente confinada a soldados, que haviam chegado no ano anterior, e a lordes menores, com a exceção de Hugh Roe O’Donnell, para além de outras famílias que tinham apoiado os espanhóis na Irlanda. Foi a partir de 1604 que se deu o dramático êxodo irlandês, em direcção à Galiza. Em Abril desse ano, foi criado na corte o ofício de Protetor da Irlanda, para lidar com o problema. No final do Verão, o número de desembarques ao longo da costa norte estava a criar sérios dilemas às autoridades locais. No início de Setembro, dois navios transportando, respetivamente, sessenta e setenta irlandeses, chegaram a Baiona e a Lisboa, tendo sido imediatamente recambiados para a Galiza. Até essa data, havia poucos militares a servirem oficialmente no exército do reino, mas esse número aumentou de forma exponencial, desde então.
O período mais crítico para o conde de Caracena foi de Janeiro de 1605 até Junho de 1606, com números de 769 e 892, num ano e no outro, com maiores concentrações na Corunha. Entre estas datas, a área entre Santiago, a Corunha e Betanzos tornou-se uma espécie de acampamento de irlandeses, formado por nobres irlandeses gaélicos, soldados, pobres e crianças. No início de Junho de 1605, havia perto de quatrocentos irlandeses na cidade e no seu entorno. Em Março de 1606, as autoridades municipais de Betanzos reclamaram acerca da imposição de receberem mais cinquenta irlandeses, que se juntavam aos quinhentos que tentavam manter. Em 1605, o apelo do conde de Caracena era que se enviasse apoio financeiro extraordinário para a Galiza e redirecionasse os regimentos para a Flandres, de modo a diminuir a pressão regional e junto da própria corte real. Inevitavelmente, o rei Filipe III acedeu, mas não de forma atempada e, assim, quando as verbas chegaram à Galiza, o problema tinha aumentado.
Por essa altura, o grau de perseguição religiosa em Munster tornou-se extremo e várias vagas de navios chegaram à costa norte-peninsular, ameaçando ainda mais a capacidade do reino para lidar com a situação. Em Setembro de 1605, o Protetor da Irlanda na corte enviou a Caracena mais cento e quarenta e seis irlandeses. Em inícios de Outubro chegou um navio com cento e sessenta soldados às Astúrias. Entre esta data e meados de Novembro, chegaram mais cento e trinta e nove irlandeses. Pelo menos cem tinham chegado em dois navios.
Um desses navios partira de um porto piscatório na Irlanda, onde os migrantes tinham sido forçados a entrar nessa embarcação, que fora até lá para pescar. A maior parte das pessoas eram mulheres e crianças, que nem sequer tinham dinheiro para comprarem mantimentos, para poderem regressar à Irlanda. Essas pessoas reportaram que mais cinco barcos estavam a caminho da Corunha. Uma vez que o barco no qual tinham chegado tinha sido danificado durante a travessia tempestuosa, o corregedor das Astúrias enviou-as em pequenos grupos de cinco, para caminharem, das Astúrias até à Corunha.
No início de Dezembro, o mesmo corregedor recebeu ordens para enviar os irlandeses de volta, nos mesmos barcos em que tinham chegado, advertindo-os que não seriam admitidos na Corunha e que aqueles que lá estavam iriam para a Flandres. A ordem de 1604 para darem aos irlandeses os cinquenta reales para voltarem para a Irlanda permanecia em vigor. Apesar destes avisos, nesta fase migratória, até 1608, muitos irlandeses continuaram a entrar em Espanha, vindos de França, disfarçados de peregrinos, no sentido da Corunha e de Valladolid. Afinal, o episódio da fuga de Hugh O’Neil, Rory O’Donnell e seus apoiantes, em Setembro de 1607, teve por destino França, em vez da Galiza.
A chegada de tantos irlandeses à Corunha e arredores teve consequências ao nível do fornecimento de alimentos. A coroa espanhola tinha obrigações para com os soldados e membros da nobreza irlandesa, mas a situação das mulheres, crianças e idosos era outra questão. Este grupo correspondia a cerca de metade do total de migrantes irlandeses e foi designado “la gente inutil”. Causou problemas de ordem social ao governador e um dilema moral e religioso, aos nobres irlandeses na Corunha e ao próprio rei de Espanha.
Houve um momento em que o rei e os conselheiros consideraram a possibilidade de forçar o repatriamento daquelas pessoas, mas isso levantava questões espirituais. A discussão acerca da validade de se enviarem crianças de volta à inelutável perseguição religiosa na Irlanda ocupou muitas consciências. Portanto, a perpétua ajuda financeira à Galiza continuou a ser a opção do rei, mas a meio do ano de 1605 o conde de Caracena nada mais podia fazer com o que recebia. Foi em Janeiro de 1606 que conseguiu convencer o rei a tomar medidas definitivas para resolver o problema. Era imperativo que os irlandeses “parassem de chegar”, dada a pressão causada pela presença da gente inútil e a influência que a presença do lorde O’Sullivan Beare e de duas companhias de soldados irlandeses teve na migração irlandesa.
As medidas adotadas pelo rei Filipe III foram a ajuda financeira extraordinária e uma ordem relativa aos destinos da gente inútil. A deliberação era inequívoca. Os nobres irlandeses que recebiam pensões reais deveriam permanecer na Corunha, onde formaram uma comunidade introvertida, que só nas décadas seguintes se assimilou e aculturou. Dos restantes, quem não quisesse regressar à Irlanda, não poderia ser forçado a embarcar. Os pobres, idosos e sessenta a setenta crianças desacompanhadas deveriam ser distribuídos pelos prelados da Galiza, os quais deveriam zelar pelas suas almas. A todos os outros, que não se adequassem ao serviço militar, deveriam ser dadas terras para trabalharem e assim se sustentarem, no estado do conde de Monterrei.
O documento histórico referente a esta ordem real, do qual partilho a imagem que consegui encontrar nos recursos digitais dos Archivos Españoles, é uma carta do rei Filipe III ao conde de Caracena, de 27 de Março de 1606. É um comprovativo que me emociona, por ser determinante para a documentação da minha ascendência irlandesa gaélica. Se não na sua totalidade, com certeza, no seu ramo mais proeminente e persistente.

Imagem de destaque:
Robert S. Duncanson (1821 – 1872); Storm Off The Irish Coast, oil on canvas, 1870.

