Em silêncio, durante décadas, eu intuí e pesquisei, com afinco e temperança, até documentar a existência de antepassados gaélicos irlandeses. Graças ao conhecimento aprofundado do noroeste peninsular, fui capaz de comprovar as minhas ascendências etnolinguísticas célticas insulares.
Tanto quanto tem sido possível apurar, em quase quatro séculos, todos os meus antepassados eram naturais das regiões a norte do rio Douro, de países insulares e continentais a norte da linha de fronteira e da latitude mais setentrional da Península Ibérica. O Norte é central para mim. Esta orientação do meu foco tem sido determinante ao longo da minha vida e na demanda da Ancestralidade.
Em tempos idos, quando eu não suspeitava que viesse a ser possível descobrir tanto acerca dos meus antepassados, fui levada pela mão por quem mais sabia. Deixei-me guiar ao longo do território transfronteiriço do sagrado Larouco, que deve o nome a “laro” e “lar”, do proto-celta para chão ou campo. Sem contar com o lado galego, só no concelho de Montalegre, existem largas dezenas de mamoas, uma raríssima cista, e pelo menos onze necrópoles medievais com sepulturas escavadas na rocha. A concentração de monumentos de natureza funerária em torno da serra demonstra a sua relevância como portal para além da realidade sensível.

A quase mil metros de altitude, foi esse o berço dos meus ascendentes diretos e de um dos ramos maternos e paternos centrais na minha árvore, que converge apenas em mim. Na serra, entre penedos graníticos que o vento de eras esculpiu, de forma idêntica aos que encontrei em territórios graníticos das Ilhas Britânicas, está uma das entradas da Cidade. Esses portais são assinalados pelos penedos erodidos que se mantêm uns sobre os outros, como por magia, e pelos montículos de pedras dos antigos castros, sob os quais habitam as feéricas moiras.
Sem nada que o ateste, eu posso apenas crer que tenha ocorrido uma confluência de folclores e que a Cidade tenha sido uma adaptação da palavra gaélica Sidhe. Talvez os meus antepassados irlandeses por ali a tenham introduzido, há apenas alguns séculos. Nada que constitua um dialeto, mas um exemplo da influência gaélica naquelas terras raianas. Da raiz sid, que é sinónimo de paz, na Éire, o Sidhe é o eterno Reino da Fidalguia, o povo feérico de que W. B. Yeats tão bem nos falou. Segundo a Mitologia Irlandesa, foi um dos locais onde se refugiaram os Danaans, o povo do Norte ou Tuatha Dé Danann, depois de terem sido vencidos pelos Milesianos.
As moiras são uma manifestação da arcaica Deusa Tripla, uma tríade de irmãs divinas primordiais, com associação estelar, que fiam o Destino na Roda da Fortuna. Elas surgem nas mitologias de raiz indo-europeia, como a Mitologia Grega e a Mitologia Celta, relacionadas com os espíritos e os mortos, conforme indicam as possíveis raízes do seu nome, do proto-celta *mrwo> *marwo, que significa morto, e mahra ou mahr, para espirito.
Outra possibilidade é a raiz mori, relativa à beira-mar, comum a Morgen, Myrddin e Merlin, que é reforçada pela tradição medieval das Maires-de-la-Mér, fugidas por via marítima da perseguição na Judeia. As três moiras foram assim sincretizadas no culto religioso cristão, considerado herético, às Três-Marias; Maria Madalena, Maria de Cleofas ou Jacobina, irmã de Maria de Nazaré, e Maria Salomé, mãe de Tiago. Elas seguiram Jesus desde a Galileia, visitaram o sepulcro e receberam o anúncio da ressurreição. Uma clara alusão à morte e ao plano espiritual.
Nos contos tradicionais portugueses e galegos, como os do Barroso, as moiras são meninas ou moças louras, muito lindas e suscetíveis, que sempre impõem algumas condições àqueles que elas encantam ou que devem desencantá-las. Surgem sozinhas, em duplas e trios, em fontes, sob os cruzeiros, os arcos das pontes romanas, como a de Chaves, e os castelos, como o de Montalegre. No Larouco e no Barroso, elas habitam casas debaixo do chão, onde tudo é de ouro e fazem fios ou correntes de ouro, com as quais, mediante o cumprimento de certas regras, retribuem favores aos mortais que lhes prestam auxílio durante o parto.
Estes tesouros, alusivos aos filões de minerais preciosos que existiam no subsolo, transformam-se em fios de sangue, quando se faz luz, quando alguém acorda de um sonho, revela um segredo, se confessa, vai à igreja, se benze, é aspergido com água-benta, ou escuta o repicar dos sinos. Este é um pequeno exemplo do legado de milénios, que sofreu tentativas de demonização. As gentes galaicas teriam as suas próprias narrativas orais, de origem celta, que terão permanecido no folclore local, mesmo depois da cristianização.
Entretanto, o lendário da Éire foi documentado pelos monges gaélicos. A eles sou grata por terem sido os únicos descendentes célticos cristãos a registarem o legado da oralidade celta dos ancestrais insulares. Eles prolongaram a longínqua influência artística La Tène na Irlanda, remanescente nos nós célticos e na característica maiúscula insular das iluminuras, que podemos ver em livros preciosos, como de Kells.
Sábios, peregrinos, eclesiásticos, mercenários e mercadores irlandeses navegaram para o noroeste peninsular. Se não antes, comprovadamente desde a época medieval. Assim o atesta uma pérola da literatura de peregrinação, Medieval Irish Pilgrims to Santiago de Compostela, da Dra. Bernadette Cunningham, pesquisadora e Deputy Librarian da Royal Irish Academy, em Dublin, que é uma introdução à longa história que liga a Irlanda ao Caminho de Santiago, através de testemunhos de mulheres e homens que fizeram a peregrinação, entre os séculos XII e XV.
É bem possível que os gaélicos tenham transmitido aquele legado céltico no noroeste peninsular. No primeiro milénio, a influência irlandesa direta, através de monges docentes, e indireta, através de manuscritos, foi responsável por muitas escolas continentais, quer no mundo germânico, quer em França e Itália. Não podemos esquecer que, depois da cristianização, a língua sagrada dos Celtas passou a ser a língua reconhecida como litúrgica e essa não era o celta, mas sim o latim.
À semelhança da Éire, o noroeste peninsular é um lugar que a natureza une. Onde as fronteiras se esbatem nos semblantes, no folclore, nas montanhas enevoadas, no agreste Planalto Barrosão, nos cursos de água, nas lagoas naturais e em aldeias raianas, como as do Larouco e a de Vilarelho da Raia. Aquele foi um dos postos da Cavalaria de Miranda e de outras tropas. A duzentos metros da Galiza, ali se uniram portugueses, galegos, descendentes de irlandeses e de outras origens.
Eu nasci de um laço de parentesco direto, que perdurou na grande metrópole. Também descendo de outro, em gerações recentes. Isto deve-se à persistência de uma tendência natural para a endogamia, a qual resultava na união de pessoas com perfis genéticos semelhantes. Apesar da resistência eclesiástica às uniões entre pessoas com graus de consanguinidade, elas existiram. Quer legitimamente, mediante pedidos de dispensa, quer naturalmente, sem matrimónio, mas de forma reconhecida pela comunidade e, mais tarde, nos registos civis.
Esta ocorrência era comum em aldeias, onde as pessoas se casavam com aqueles que conheciam desde sempre, em quem confiavam, e com quem, muitas vezes, tinham graus de parentesco. Era quase uma inevitabilidade, que também garantia o fortalecimento de laços, a sobrevivência dos clãs, a concentração dos bens, e a preservação do modo de vida ancestral. Nem tudo era fruto de conveniências e o amor surgia de forma espontânea.
Nos tempos dos castros do noroeste peninsular, a endogamia era encorajada. Da mesma forma, na Irlanda gaélica foi prática comum, muito para além da cristianização. Os meus antepassados são menos do que os de uma pessoa que descenda de famílias diferenciáveis. Desde cedo, tive consciência dessa unicidade. Não havia os dois lados da família, com memórias distintas, de lugares e eventos de outros tempos. Em vários ramos ascendentes existiram laços de parentesco que contribuíram para restringir o espectro da minha ancestralidade, ainda assim bastante diversificada.
Sinto absoluta necessidade de conhecer o mais possível acerca dos meus antepassados, das suas vivências e dos eventos históricos que os moldaram, afastando-os gradualmente da realidade ancestral, ao mesmo tempo que preservaram muito do seu legado. Não é na espiritualidade deles que tenho encontrado resquícios celtas, mas há alguma essência inefável nos semblantes, nos temperamentos, na relação simbiótica com a paisagem, na abertura ao insólito, na aceitação do sobrenatural, no modo sussurrado e franco de falarem do passado, que recontam com um certo pesar e uma centelha no olhar.
Imagem de destaque:
O Larouco, visto do Castelo de Montalegre (All Rights Reserved).
