Lenda e Imperialismo

A Literatura Arturiana reflecte a forma como o povo da Cornualha era visto. Basta perceber o menosprezo de Thomas Malory ao referir-se aos cavaleiros córnicos que serviam o Rei Mark. Nem tudo se devia à necessidade de caracterizar o soberano e enaltecer Tristan.

A depreciação dos córnicos, como cobardes incapazes de estarem à altura dos valores da Chivalry, era habitual, desde tempos pré-anglo-saxónicos, e prolongou-se até à época vitoriana. Para o odioso William of Malmesbury, os córnicos formavam uma etnia distinta e desprezível, que nas palavras dele era “quam contaminatæ gentis“, ou seja, “that filthy race“, “aquela infecta gente”. Este insulto foi escrito em 1120, quando o referido historiador inglês e, portanto, um agente de opressão e propaganda, mencionou a expulsão dos córnicos de Exeter, e de todo o território de Devon, no ano de 927, por Athelstan, que também aprovou estatutos que tornaram ilegal que qualquer córnico possuísse terras e legal que qualquer inglês matasse qualquer córnico, fosse homem, mulher ou criança.

Isto devia-se ao inveterado Cristianismo Céltico, que se espalhou a sul da fronteira fluvial, depois da época romana. Também, ao facto da Dumnónia ter sido um dos territórios britânicos que resistiu ao avanço dos anglo-saxónicos ou ingleses, e dos normandos. Pelo menos, tanto quanto conseguiu, o que foi mais do que todos os seus vizinhos.

Que a depreciação e o insulto acontecessem há mais de mil anos e até depois da época vitoriana, não espanta ninguém, mas o flagelo perdurou. A ponto de ser legitimado em 2010, pela Equality and Human Rights Commission que, simplesmente, negou a existência dos córnicos com uma frase, que se deve ao estereótipo daquilo que é um grupo étnico, no qual não cabe a noção de diversidade, a vários níveis, desde as mentalidades às tipologias físicas. Não, não cabe. Para muitos, que até se consideram despreconceituosos, a diversidade só tem a ver com o multiculturalismo e não com os grupos étnicos, nos quais, na verdade, também pode existir multiculturalismo. Para a referida comissão, não. Ou são todos iguais, a todos os níveis, ou não existem.

“It’s OK to insult the Cornish because they don’t exist.”

Em 2014, um ano que ficou marcado por cheias e tempestades costeiras que cortaram várias vias de acesso, inclusivamente ferroviário, à Cornualha, exacerbando os sentimentos de distanciamento e os desejos de autonomia, o povo córnico foi reconhecido como minoria étnica céltica, pelo Governo do Reino Unido e ao abrigo da European Framework Convention for the Protection of National Minorities. Nada que impedisse o mesmo governo de, alguns anos mais tarde e apesar do compromisso assumido, cortar os fundos para financiamento do ensino da Linguagem Córnica ou Kernewek.

Na Escócia e em Gales nada é gerido por uma organização inglesa. Na Cornualha deviam caminhar nesse sentido. Kernow conta com a sua própria organização de gestão do património. A Cornwall Heritage Trust é análoga à Historical Scotland e à CAWD galesa. Deviam ser feitos esforços para ressarcir a nação córnica, restituindo-lhe plenos direitos sobre Tintagel Castle, Pendennis Castle, St Mawes Castle, Restormel Castle, Launceston Castle, e Chysauster Ancient Village, e apoiando a suave transição da gestão destes recursos patrimoniais, que são simbólica e espiritualmente potentes. As incorrecções podem parecer subtis, mas são arrasadoras da forma como as pessoas pensam e do estatuto da Cornualha, enquanto região diferenciada, com sérias aspirações a ser reconhecida como país ou nação autónoma. Conforme podemos ler, assim que abrimos a brochura que comprei na gift shop, em Tintagel Castle, Cornwall:

«Tintagel Castle is one of the most spectacularly beautiful places in the whole of southwest England. »

O que está mal nesta afirmação é que a Cornualha está situada na Cornualha! No sudoeste da Grã-Bretanha, Britain. Em lugar nenhum se lê que a Escócia é parte do norte de Inglaterra, nem que o Pais de Gales é no oeste de Inglaterra, mas sim que estão, respetivamente, a norte e a oeste de Inglaterra. O imperialismo inerente a esse tipo de afirmações seria inaceitável. Como deveria ser no caso da Cornualha. Mesmo que as fronteiras entre países e as linhas traçadas nos mapas não digam muito a algumas pessoas, devemos ser sensíveis a estas nuances, em vez de optarmos pela displicência.

Importa que todos os que são sensíveis procurem saber mais acerca do passado da Cornualha, da razão pela qual a sua língua chegou a estar extinta e por que motivo se chegou ao ponto de ridicularizar as aspirações do seu povo. É essencial refinar perceções e encontrar formas cada vez mais salutares, claras e justas de referir aspetos étnicos, cronológicos, territoriais e ecorregionais. A dimensão do problema relativo a Kernow é tal que qualquer pessoa menos atenta e que esteja fora do contexto pode cair na armadilha de dizer, por exemplo, que foi a Inglaterra e visitou Tintagel, a Merlin’s Cave, Rocky Valley, e Nathan’s Cuva ou St Nectan’s Kieve and Glen, entre tantos outros sacred sites.

A supremacia implícita em certas afirmações, títulos de eventos e peregrinações por “Inglaterra” é muito danosa. Algumas expressões presentes em programas de viagens soam a amálgamas cronológicas. De resto, os caminhos percorridos por milhares de grupos e peregrinos solitários não se restringem ao território de Inglaterra. Tintagel, o castelo de Arthur, não está situado em Inglaterra! O adjectivo britânico e a menção à Grã-Bretanha são mais adequados. Interiorizar estas nuances é fundamental e isso deve refletir-se no que se diz e escreve. Nesta lenta metamorfose, muito há a ser feito para descolonizar, liberar, e apaziguar.

Meur ras. Gratidão.

Imagem de destaque:

Excerto da brochura Tintagel Castle, do English Heritage.

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