O Incesto na Lenda Arturiana

O tema do incesto surgiu na Lenda do Rei Artur numa época muito tardia, no final da Baixa Idade Média, na obra Le Morte Darthur ou Le Morte D’Arthur, de Sir Thomas Malory. A obra foi publicada em 1485, quinze anos após a morte do autor, que aconteceu no ano em que ele saiu, pela última vez, de uma prisão londrina, onde escreveu a obra, terminada entre 1468 e 1470.

A prensa móvel tinha sido inventada por Gutenberg, em 1436, e o livro de Malory foi publicado em edição impressa por William Caxton. Por este facto, Le Morte d’Arthur desde logo se tornou um fenómeno completamente distinto dos manuscritos da autoria de eclesiásticos.

Sem que houvesse nenhuma alusão anterior, o incesto foi uma introdução de Malory, com objetivos muito específicos. Não foi um recurso literário usado para perverter os valores espirituais pré-cristãos. Nessa época histórica, no século XV, o paganismo não constituía um problema, pertencia ao passado e não representava ameaça ao mundo cristão, que estava bem instituído.

Nesta obra, onde até o feiticeiro Merlin tem uma postura moralizadora perante o incesto de Arthur, as espiritualidades e religiões pré-cristãs não têm qualquer expressão e, por isso, não podem ter sido um alvo a atingir e a erradicar. Existem feitiços e magia, sobretudo pela mão de mulheres, mas não há qualquer menção a cultos nem a rituais.

No enredo de Malory, as mulheres têm um papel ativo, benéfico, maléfico, desinibido, e sexual. O incesto acontece entre Arthur, cujas virtudes são amplamente descritas, e uma das suas três irmãs por parte da mãe, Igraine. Elas eram Margawse, Elaine, e Morgan le Fay.

John Roddam Spencer Stanhope (1829 – 1908); Morgan Le Fay, óleo sobre tela, c.1880.

Esta última, que sente um amor não correspondido por Laucelot du Lake, faz artes e encantamentos para beneficiar o seu amante Accolon e tentar assassinar Arthur. Ela está conotada com a feiticeira ou a bruxa. Margawse casou com Lot, Rei de Orkney, com quem teve quatro filhos, que foram com ela à corte de Arthur, para expiarem o rei. Uma vez que, devido ao secretismo de Merlin, nem ela nem o rei sabiam que eram irmãos, e tendo Arthur sentido grande amor e desejo de se deitar com ela, deu-se a união da qual resultou um filho, Mordred.

Ninguém deu indicações a Arthur para agir como agiu. Ele não seguiu os preceitos de nenhuma religião, não desempenhou nenhum papel num ritual de casamento com a terra que envolvesse sacerdotisas, conforme mencionado em The Mists of Avalon. Também não estava sob nenhum feitiço, nem sob o efeito de nenhuma poção mágica. Nem ele nem Margawse.

Na mesma noite, que não foi descrita como sendo de Beltane, nem de outra festa ou data religiosa, Arthur teve um pesadelo. No dia seguinte, Merlin encontrou-o na floresta, que tal como na história de Percival é um lugar simbólico. Foi aí que ele lhe revelou a sua verdadeira origem, admoestando-o por ter feito uma coisa muito tola, pela qual Deus havia de puni-lo, pois o filho resultante iria destruí-lo, bem como a todos os seus cavaleiros.

O tema do incesto foi abordado pelos Gregos, como tendo frequentes desfechos sangrentos, com a ocorrência de tragédias familiares e parricídios. Os Gregos eram politeístas e, portanto, não queriam deturpar os seus cultos nem as religiões pré-cristãs, de uma forma geral. Esta influência literária foi incontornável, tanto na Antiguidade como na Idade Média. Para além disso, ao fim de vários séculos de monarquias europeias, que eram mantidas graças a uniões estratégicas que, muitas vezes, aconteciam entre pessoas com fortes graus de parentesco, era sabido que havia consequências hereditárias indesejáveis. Eram várias; desde deformidades físicas, a loucura e a um notório enfraquecimento das linhas masculinas, que levava à extinção dos ramos centrais dessas famílias.

Portanto, o incesto era prenúncio da morte do Pai e dos seus valores, que deviam ser perpetuados pela via patrilinear. Conforme refiro no contexto da Ancestralidade, a Igreja sempre se opôs a uniões endogâmicas, que eram consideradas incestuosas, quando em primeiro grau; mesmo tratando-se de primos e não de irmãos. Para além da questão biológica, as frequentes uniões da realeza aparentada nem sempre beneficiavam as alianças políticas. O objetivo de Malory foi demonstrar a importância de respeitar certos limites que, desde o antigo Egipto, à Grécia, aos Celtas, e até aos dias de hoje, são considerados prudentes.

Thomas Malory tinha preconceitos étnicos e sociais que eram vigentes, acerca dos córnicos, mas em hipótese alguma ele sugeriu que o incesto tinha sido aceitável num momento pré-cristão. Para o autor, era determinante criar um contraste entre o efeito nefasto e cáustico dos adultérios e do incesto e a excelência dos valores intemporais de Areté, da Chevalerie ou Chivalry, manifestados na nobreza do regime de Arthur, nas virtudes de sua Majestade, na mestria de Merlin, na intercedência divina, nos mais elevados valores espirituais, nas proezas, na lealdade, na santidade de vários cavaleiros, e na honra das damas, que todos eles, e principalmente o rei, deviam respeitar e proteger, sob pena de gerarem o caos, o fim da Távola Redonda, a ruína de Camelot, e até os seus próprios assassinos.

Imagem de destaque:

Arthur Rackham (1867-1939); How Mordred was Slain by Arthur, and How by Him Arthur was Hurt to the Death, ilustração de The Romance of King Arthur and His Knights of the Round Table, de Alfred William Pollard, adaptado de Le Morte D’Arthur, de Sir Thomas Malory, Macmillan, 1917.

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