Tintagelândia

Em Tintagel Castle estamos perante um cenário dramático, representado por pintores como Turner, Palmer e Trost Richards. Tendo feito várias visitas entre 2001 e 2016, tive oportunidade de interiorizar a paisagem, como era antes dos ataques mais chocantes à sua integridade, que o transformaram numa espécie de Disneylândia. Tal como Stonehenge, é gerido pelo Historical England ou English Heritage, e trata-se de um património que, em alguns aspetos, é diariamente espoliado. Ao longo de séculos, tem sido usado para propaganda inglesa.

À semelhança de outros locais, o promontório de Tintagel é explorado de forma calculista e manipuladora. Com adições supérfluas, esculpidas, escavadas, cravadas na rocha, que fazem as delícias de quem, com visão turvada, acha por bem fotografá-las e exibi-las, mas que têm custos irremediáveis para a natureza, a dignidade do monumento e o entorno em que se insere. Acima de tudo, são sinais da prepotência daqueles que ousam intervir onde apenas os elementos naturais deviam esculpir a sua Arte.

Deram carta-branca a um artista local, que obviamente não interessa validar, para que fizesse surgir, numa pequena e perfeita secção de rocha viva, um qualquer rosto barbudo de tipologia física bem vincada, ao estilo arrepiante da Rússia Soviética e da Alemanha Nazi. O ato de arrogância foi filmado e está disponível na internet, num vídeo a que nunca assisti. Cada martelada no cinzel foi uma agressão à Pedra, ao Espírito do local, e ver isso seria penoso para mim. Entretanto, essa escultura já inspirou alguém a partir-lhe o nariz, contribuindo também para o ataque generalizado à natureza daquela área. Aquela secção de rocha que foi obliterada, nunca mais vai ser vista, nem por mim, nem por ninguém. Esse senhor, que se faz passar por Merlin, tem conquistado viandantes que o fotografam, enquanto lhe afagam a barba e o rosto frio de morte. O outro, feito de bronze, que parece saído de Star Wars ou The Lord of the Rings foi absurdamente chamado de Gallos, o que em Kernewek não significa aquilo que esperavam.

O mais poderoso é que o Espírito de Tintagel já deu a sua resposta a esta intervenção, porque existe uma expressão, para não lhe chamar um rosto, que surge do lado direito e parece estar a dizer ao senhor esculpido pela mão de um homem para desaparecer dali. Há quem lhe chame o gorila ou o King Kong de Tintagel, que se apresenta como um manifesto que dispensa mais apreciações. Entretanto, não obstante, parece-me importante fazer uma reflexão, tecendo algumas considerações acerca de intervenções artísticas, em Tintagel e noutros locais históricos. Tento colocar em perspetiva o caso da escultura na rocha viva, abordando a situação de um ponto de vista lato, sem atacar o artista, e procurando encontrar um sentido neste e noutros atos vagamente semelhantes. O que não quer dizer que o considere, sequer, aceitável.

Pessoalmente, esta peça não me interessa. Não está em causa a habilidade do artista nem a qualidade técnica da sua performance. Para mim, é mais um homem barbudo, que parece uma representação hippie e que foi imposto ao património córnico e britânico, de um modo geral. É qualquer coisa que se espera encontrar em lugares como Glastonbury ou em Nathan’s Cuva, que passou a ser conhecida por St Nectan’s Kieve and Glen, mas que não foi o cenário do ermitério daquele santo do século VI. Logo à partida, a representação não se harmoniza com as minhas preferências artísticas. Sejam personagens históricas ou lendárias, há imensas obras figurativas, em vários monumentos. De tal forma que, mesmo não parecendo preocupantes, se vistas uma a uma, são excessivas e irritantes, quando contempladas em conjunto. O que aprecio é a silhueta do gigante, que surgiu naturalmente na encosta sul de Tintagel. Nada se compara.

Eu não sou completamente avessa à intervenção artística em lugares históricos, especialmente quando tem carácter efémero, mas não conheço nenhum outro exemplo em que a ideia de esculpir, de forma permanente, em rocha viva, tenha sido aprovada por entidades responsáveis pelo património. Porque, não há volta atrás, com este tipo de intervenção. Mesmo que, no presente, ela agrade ao English Heritage e a muita gente, é muito provável que venham a lamentar uma adição tão permanente. Afinal, foi aberto um precedente, tremendo, em termos de património. Desde o início do processo de Disneyficação, o EH anunciou que este seria apenas um de vários acrescentos previstos em Tintagel. Isto pode significar que surgirão mais representações de homens barbudos naquele e noutros locais. Ou seja, o EH pode ter criado um monstro com o qual não vai conseguir lidar, muito menos conter. Como muitas pessoas têm questionado, será que Stonehenge, com as suas associações à personagem lendária, também deveria ter um alegado Merlin esculpido num dos seus trílitos?

Outro aspeto, que tem sido notado pelos arqueólogos e críticos de Arte Pública, é o precedente no que respeita aos visitantes que poderão desejar intervir no local. É certo que a visita é uma intervenção. Deixamos pegadas e outros vestígios que contribuem para a erosão, tanto ou mais do que aquela provocada pelos elementos naturais, os quais em Tintagel são muitos e poderosos. Porém, qualquer pessoa pode sentir-se encorajada e no direito de deixar naquelas rochas os seus próprios registos. Tendo em conta os entalhes de séculos anteriores que existem no interior da câmara de Newgrange, na Irlanda, é possível ter uma ideia do flagelo. Afinal, para muitos isso é considerado Arte Popular. Poderá até vir a surgir um novo movimento artístico. O EH não conseguirá impedi-los de juntarem essas obras, criadas à revelia de qualquer entidade, àquela que foi oficialmente autorizada.

Esta e outras intervenções parecem uma forma desenfreada que o EH encontrou de fazer publicidade sensacionalista e de forçar a permanência da lenda num contexto patrimonial. No qual muitos elementos foram apagados da paisagem e onde apenas algumas ruínas evocam um certo imaginário medieval. Aquele que alude a cavaleiros ardendo em desejo e a damas confinadas à domesticidade inerente ao seu castelo, aguardando que as suas vidas sejam alteradas, por algum passe de mágica planeado e executado por esse vulto, de nome Merlin. Afinal, parece que a lenda não vive por si mesma e que uma gruta é demasiado abstrata para que alguém consiga evocar aquela personagem. Foi, portanto, completamente subestimada a capacidade de abstração dos visitantes. A ponto do EH ter achado que precisamos que nos façam um desenho, passo a expressão, para entendermos que aquele lugar está associado a Merlin e que é daquela forma que devemos vê-lo. Ou seja, o EH não percebe nada acerca de imaginação nem de criatividade.

Mais do que uma tentativa de evitar que a lenda se disperse e desapareça do panorama, este é um ato de apropriação patrimonial, tanto do ponto de vista da lenda, como da paisagem natural. É de lembrar que, apesar das limitações de meios, há várias décadas e séculos, gerações de profissionais, no âmbito da conservação do património, tentaram reduzir o impacto de vários elementos; como a sinalética, cartazes descritivos e outras formas de interpretação do local. Assim, a lenda e a arqueologia foram coexistindo, enquanto os visitantes andavam livremente, sem grandes restrições nem a imposição de um circuito rígido, como existe em grande parte dos monumentos, museus, e lugares arqueológicos. Essa liberdade interpretativa nunca devia deixar de ser uma prioridade, uma vez que os visitantes, em particular as crianças, precisam de criar as suas próprias visões da lenda e de fazer as suas apreciações da paisagem e do património edificado.

Ao esculpir um rosto e ao dar a esse rosto o nome de Merlin, a nossa liberdade de imaginar está a ser limitada. Sobretudo, no caso de pessoas que não tiveram a possibilidade de criar as suas próprias imagens mentais da personagem. Prova disto é que, para muitos, a imagem de Merlin é aquela a que foram expostos quando crianças, através dos filmes da Disney. O homem de barba branca e óculos, com um longo chapéu azul, um pouco torcido na extremidade. Idêntico àquele, decorado com estrelas e uma lua crescente, que é usado pelo próprio rato Mickey, na sua versão de aprendiz de feiticeiro. Se alguns têm conseguido sublimar estas e outras representações, até libertarem o espaço necessário ao surgimento das suas próprias recriações mentais, outros ficaram para sempre presos a elas. Que isto se passe por causa de um filme de animação é uma coisa, mas outra, bem diferente, é que uma entidade nos imponha uma representação, enquanto visitamos um monumento, que deveria ser fonte de inspiração, quer através da lenda, quer à margem dela. Porque, ainda que seja a minoria, há visitantes que não se interessam por esse aspeto e que dispensam tamanha fantochada, que é totalmente kitsch.

Esculpir um alegado Merlin em rocha viva, fixa a sua aparência no local e na mente das pessoas, inibindo a imaginação e indicado, de forma subliminar, um determinado espaço como sendo aquele que devemos associar a Merlin. Portanto, é uma manipulação interpretativa, que nos sugere que alguns locais são mais ou menos sérios, do ponto de vista arqueológico. Como se aquela secção de rocha não fosse tão importante quanto outros elementos em Tintagel, ou em Stonehenge, ou na St Michael’s Tower, no Tor de Glastonbury, e fosse dispensável. A ponto de o EH permitir uma intervenção irreversível, que nem sequer é comparável a uma escultura de bronze erigida num pedestal ou fixada no chão rochoso de Tintagel. Em vez de terem dado vida à personagem, que para muitos tem uma dimensão espiritual, o que aconteceu foi uma tentativa de matarem Merlin nas nossas imaginações; e a própria lenda, na sua imensidão eternal.

De olhos bem fechados, como os de muitos visitantes que aplaudem a intervenção, aquele rosto pode ser o de alguém que está a meditar ou a dormir. A mim, parece que está morto e só inspira a minha comoção, como tem acontecido, desde que a Disneyficação de Tintagel Castle se intensificou. Não se trata de uma questão de gosto pessoal. Continuar a contribuir para este status quo conflitua com a minha sensibilidade, artística e espiritual, no que concerne ao vínculo que me une ao território e à sua memória ancestral. Por mais achados arqueológicos que tenham sido interpretados com laivos tendenciosos, ecoam as palavras de Henry Jenner, scholar britânico de Linguagens Célticas, impulsionador da revitalização da Línguagem Córnica e ativista cultural córnico, que foi o fundador do Gorsedh Kernow, em Boscawen-un. Em 1927, ele escreveu Tintagel Castle in History and Romance, que consta, na íntegra, da excelente e agora rara colectânea, Inside Merlin’s Cave, A Cornish Arthurian Reader 1000-2000, que adquiri em Glastonbury, recém-publicado [op.cit., edição de 2000, p. 190.]:

«Altogether, Tintagel Castle, considering how famous it is, especially in modern imitations of Arthurian romances, has singularly little history and not much romance attached to it, when one comes to sum it up, and it was probably not really the scene of the one incident that brought it into notice. Historically and romantically Tintagel Castle is rather a fraud.»

A realidade injusta não afasta de Tintagel as hordas de fãs de romances best-seller, filmes e séries inspirados nas lendas. Bem pelo contrário. Claro que a solução também não é contornar a questão, evitando o problema e abdicando de visitar o ilhéu. Algumas pessoas conscienciosas decidem ir apenas à Merlin’s Cave e à enseada, quando a maré permite, mas isso não resolve nada. É um desperdício de recursos e muito frustrante para quem se desloca até lá e acaba por ficar à porta ou, passo a expressão, por morrer na praia. Era o que acontecia quando a estrada passava perto de Stonehenge e muitos se contentavam, ou não tinham opção, a não ser ficarem do lado de fora da vedação a tirarem fotografias através da rede. Ou mesmo quando andam em seu redor sem poderem tocar os trílitos. Não sei o que isso é e, tal como em Tintagel Castle, ainda hoje dou por mim incrédula com a imensa sorte que tive. A conservação de toda a área ou propriedade, tal como é descrita, tem de ser feita por alguém e os acessos têm de ser seguros, mas sem a explorarem, como um parque temático.

O facto de não pagarmos bilhete ao English Heritage, indo até lá sem contribuirmos para a manutenção do lugar, não nos exime de nada. De resto, a experiência de subir até à ilha, de caminhar por ela, em escuta consciente, não é substituível, e muito menos dispensável. É magnífica! Tenha ou não a ver com a Lenda Arturiana, o promontório de Trevena, que também é o nome do lugar, é um manancial espiritual. Nessa medida, é um recurso vibrante da memória ancestral. Nunca o meu ser, a minha memória e os meus registos límbicos se esquecerão de cada uma das vezes que subi àquele colosso, pelos degraus de ardósia. No presente, só é possível descer por eles. Mesmo no pico do Verão, o acesso pode ser interditado por condições atmosféricas adversas, como aconteceu em 2004, devido a rajadas de vento que foram o prenúncio do desastre que se abateu sobre Boscastle, poucos dias depois.

Imagem de destaque:

Postal ilustrado “King Arthur’s Castle”, Tintagel, 27-28 de Junho, 1931 (F. Firth & Co. Ltd.) ©Ø.

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